José d' Encarnação Artikel in portugiesischer Sprache für die Portugal-Post No. 76 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Festejar o ciclo anual sempre foi apanágio do Homem, mormente desde que aprendeu a ser sedentário e, consequentemente, a depender, para a produção de alimentos, do que viria a chamar-se as estações do ano. E cada ciclo era celebrado com festas, em que a tónica religiosa jamais faltou. 

Todas as religiões souberam, aliás, respeitar desde sempre essa interior pulsão, que correspondia, afinal, ao ciclo da vida. E todas souberam sempre unir o espiritual ao material, não havendo festa religiosa que não esteja ligada a aspectos bem concretos da existência humana. 

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A festa em honra de S. António, em Cascais, reúne exemplarmente essa dupla característica de religião e de política. Não se dá relevo à tónica ‘casamenteira', digamos assim, deste doutor da Igreja Católica, favorável, segundo a tradição, ao enamoramento; não se evidenciam as máximas patentes nas suas obras (célebre é, por exemplo, o seu «Sermão aos Peixes»); assinala-se, em Cascais, o taumaturgo protector do Regimento 19 de Infantaria, aquartelado na cidadela local. 

Chamado a integrar as tropas luso-britânicas que haveriam de enfrentar, no Buçaco, a 27 de Setembro de 1810, o exército francês invasor, comandado pelo Marechal André Massena, o Regimento 19 levou com ele a estátua do seu patrono, S. António e sob a sua protecção se colocou. 

Certo é que, reza a tradição, no mais aceso da refrega, quando parecia estar o inimigo a conseguir levar os nossos de vencida, os homens do Regimento 19 invocaram devotamente o Santo e, de um momento para o outro, a vitória acabou por lhes sorrir. 

Conta o General Afonso Botelho que, tendo os franceses logrado furar a divisão ligeira de Crawfurd, de pronto acorreu um batalhão do ‘19', sob comando do tenente-coronel Mac Bean, que «desencadeou uma fogosa e brilhante “carga à baioneta”, que levou de vencida os imperiais […], lutando corpo a corpo, desbaratando-os com as próprias coronhas das espingardas». Reza a tradição que até o santo chegou a ser ferido em combate, porque uma bala o trespassou de lado a lado. 

Mereciam, pois, recompensa os briosos soldados; mas mais a mereceu quem lhes deu ânimo na luta: a ‘presença' de Santo António. Por isso, acabada a batalha, todo o Regimento ouviu missa ante a imagem do santo solenemente postada sobre um altar de campanha. 

O Regimento 19 só regressará, no entanto, ao seu quartel a 30 de Agosto de 1814 e com ele veio a imagem. No dia seguinte, o príncipe regente D. João, exilado no Brasil, deliberou, por carta régia, elevar Santo António ao posto de tenente-coronel de Infantaria, atribuindo-lhe o soldo correspondente. 

As convulsões políticas do século XIX tiveram também reflexo no conchego dado, ou não, à imagem, que chegou a estar escondida durante algum tempo, até que regressou à capela de Nossa Senhora da Vitória que faz parte da Cidadela de Cascais. Destituída que foi a Cidadela do seu estatuto militar e retirados para Queluz, já no final do século XX, os soldados nela aquartelados, com eles foi também a imagem do santo, não, porém, a autêntica, pois que, numa das idas ao Buçaco para cerimónias evocativas do triunfo, dela foi feita réplica fiel e essa é que, sigilosamente, foi ‘devolvida'. Na actualidade, é cedida para cerimónias que impliquem a ‘presença' do santo, como é o caso dos festejos em sua honra. 

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Celebrou-se, em Lisboa, no ano de 1895, o 7º centenário do nascimento de Santo António. Das comemorações constou, na tarde de 30 de Junho, uma procissão em que a imagem do santo esteve presente. 

«O andor», lê-se numa descrição da época, «enfeitado com coroas e rosas de Cascais, era conduzido e ladeado por Veteranos, seguindo-se-lhe uma força de Infantaria, sob o comando dum oficial. À sua frente, um outro veterano empunhava a bandeira do histórico Regimento de Infantaria 19». 

As festas tradicionais em honra de Santo António pode dizer-se que tiveram o seu pomposo início em 1964, ano em que mui solenemente Cascais festejou os 600 anos da sua elevação a vila. Houve, nesse ano, um Salão Antoniano, em que estiveram patentes 82 trabalhos, de 23 artistas, alusivos à vida do santo. E o cortejo histórico, militar e religioso, percorreu, na tarde do dia 20 de Junho, o trajecto desde a Cidadela até à igreja de Santo António, no Estoril, tendo-se integrado nele cavaleiros da Ordem dos Templários, soldados trajados à maneira das campanhas napoleónicas, representantes de entidades religiosas do País e do estrangeiro, de confrarias, do Exército e dos Pupilos do Exército. 

Repetiram-se os festejos a 8 de Junho de 1966, com cortejo idêntico e nele se incorporou uma representação vinda expressamente de Pádua, portadora duma relíquia do santo. Idem em 1968. Os festejos eram de dois em dois anos, um ano em Pádua, outro em Cascais, porque, como se sabe, em Itália o santo é chamado «de Pádua» por aí ter falecido a 13 de Junho de 1231. Esse dia – embora o padroeiro de Lisboa seja S. Vicente e não S. António – é considerado o «Dia da Cidade», feriado portanto; e Cascais seguiu-lhe recentemente o exemplo, elevando 13 de Junho a seu dia festivo por excelência. 

O cortejo – que, devido aos constrangimentos da circulação rodoviária, apenas percorre as principais artérias do centro histórico – mantém, todavia, as genuínas caraterísticas de evocação religiosa e militar. A imagem do santo é levada ao dorso de uma mula branca, ladeada por guarda de honra de soldados trajados com a indumentária oficial da Guerra Peninsular. 

Dir-se-á que, para além do fausto exterior, estereotipado, comemorativo e vistoso, há, nestes festejos, um duplo sentimento de boa parte da população cascalense: a devoção verdadeira, que nunca deixou de existir, por Santo António ser, na verdade, um santo deveras ‘popular'; e o titilar do orgulho de ser de uma vila que, não deixando de emparceirar com quantas ousam adoptar avançados modelos para o bem-estar dos habitantes, sente que detém tradições a manter para fortalecimento das suas raízes e da sua autonomia. 

 

[Fotografias gentilmente cedidas por Guilherme Cardoso]