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Uma História quase de Natal

Por Adelina Almeida Sedas

O Natal ainda vinha longe. Estávamos em Portugal no Verão do ano do Senhor de 1947.Um Verão quente, em que quase nem se falava nem respirava para poupar todas as energias e águas do corpo. Éramos 6 crianças em casa e muitos adultos que organizavam a vida da família. A tia Lucília encarregava-se da educação dos mais pequenos.

Uma manhã, ao voltar da missa, a tia contou que no próximo domingo vinham para a nossa paróquia crianças da Austria. O padre João pediu a todas as famílias com mais posses que tomassem conta de uma dessas crianças. As pobres tinham perdido a casa e os pais, e morriam de fome abandonadas. Era o nosso dever moral ajudá-las e recolhê-las.

«Já aqui temos pobres que cheguem!» comentou o meu avô, autoridade máxima da família. «O Papa que lhes dê casa. O Vaticano é muito grande!» Silêncio. Um avô nunca se contraria.

No domingo, a tia Lucília e as meninas foram como sempre à missa do meio-dia. O adro da igreja, um pátio de granito sem verdes nem sombras, onde no Inverno a gaiatagem corria para aquecer, era nesse meio-dia de domingo uma fornalha ardente. O ar quente e parado e o sol a pique incidiam no granito cinzento. Nada se mexia. As lagartixas dorrmitavam sonolentas sobre as pedras escaldantes e nem boliam os olhos ao vermos passar.

Num canto um grupo de crianças sujas e desalinhadas encostava-se à parede em busca de uma sombra. Eram crianças austríacas. Tinham perdido os pais na guerra. A Cruz Vermelha trouxera-as para Portugal, onde apesar de tudo ainda se podia ser críança. Estavam assustadas. Os cabelos louros e escorridos pendiam sujos e suados por uns rostozinhos pálidos. Estavam mal vestidas. Uns bibes pardos, botas sem meias e ao pescoço um letreiro com um número, o nome e a data de nascimento. Nada mais.

Olhavam-nos pasmadas e sem falar. Nem merecia a pena. Ninguém as teria entendido. Encostadas umas às outras protegiam-se assím dos olhares curiosos dos que passavam para a Missa. Quem queria e tinha condições, podia escolher uma e levá-la para casa.

As mais feiinhas iam ficando de sobra.

Nós só queríamos ir à Missa do meio-dia, mas aqueles olhos de criança perseguiam-nos. Não fomos. Em vez disso, Gertrud, uma menina de 8 anos veio connosco para casa.

Era feia, magra, cabelos escorridos cor de palha, sardenta, unhas roídas e uns pés enormes. A caminho de casa nem falámos, fechadas em nós próprias, magicando na reacção do avô.

Em casa a mesa estava posta e o avô esperava sentado. «Lavar as mãos, pentear o cabelo e já para a mesa!» Gertrud atrás de nós. O meu avô lia o jornal Sentámo-nos. Gertrud também. Para ela, a mesa não estava posta! O avô fechou o jornal, olhou por cima dos óculos e sem perder uma palavra, empurrou o seu prato para a Gertrud.

Gertrud, que daí em díante se passou a chámar «Catruda», fícou em nossa casa. A Catruda andou comigo na escola, aprendeu português, tínha umas lindas tranças louras com dois laçarotes azúis e sapatinhos de verniz.

Nós também aprendemos alemão com ela: Kaputt e Scheiße... E também aprendemos a dançar e a cantarolar: «Zeigt her eure Füßchen».

Nunca entendemos porque teve que nos deixar. A tia Lucília fez-lhe um vestido branco maravilhoso, corn folhos e pregas e uma grande bainha. Na bainha escondemos um fío de ouro, uma pulseira, um anel e um relógio. Prendas da família e dos amigos.

No dia em que se foi embora, nós os pequenos nem saímos de casa de tristeza. O meu avô carregou a mala pesadíssima e foi-se despedir dela à estação de caminho de ferro.

Gertrud ainda nos escreveu algumas cartas, bonitas com corações e florzinhas. Há 35 anos que não temos notícias dela. Vive, por certo, por aqui, talvez bem proxímo de mim.Talvez tenha família, filhos, netos.

E a eles há-de contar de como em Portugal, no Verão de 1947, se fez Natal. Espero que não se tenha esquecido.







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Portugal-Post Nr. 8 / 1999