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Motivos para ler:
Os Mensageiros Secundários de Clara Pinto Correia

Por Madalena Simões

Quais as qualidades deste romance de Clara Pinto Correia? Variedade e humanidade. Explico-me.

A variedade por excelência encontra-se nas três linhas narrativas, de índole distinta, desenvolvidas ao longo do texto, por meio de alternância e encaixe, e que só no último capítulo se fundem. A primeira encena o ambiente académico e o poder de atracção de uma mulher deslumbrante sobre um homem com reduzida experiência sentimental, respectivamente Ana Maria da Silva Pereira, bióloga portuguesa, e Chuck Sorenson, professor associado em História de Arte na Universidade de Stanford (EUA).

Trabalham em colaboração sobre uma série de textos fascinantes, por apresentarem relatos, amiúde citados em português e inglês, do aparecimento de monstros antes do terramoto de 1755, descrevendo-os e incluindo ilustrações - o terceiro nível. O destaque concedido a textos genuínos do século XVIII e a demora na apresentação dos monstros, que desafiam a capacidade de imaginação de qualquer um, revelam um comprazer na escrita e deliciam o leitor.

A segunda linha narrativa da obra, que só o desenlace mostra não ser independente da primeira, apresenta sob o signo da água o relato diarístico de uma jovem. Acompanhada pelo cão, encontra refúgio junto às margens tranquilas de um lago: dorme num barco, sobre as águas que conduzem a uma ilha-santuário próxima, plena de estátuas antiquíssimas. A cegueira do vate da aldeia, como a abertura formular de cada capítulo ("O povo que vive à beira do lago costuma dizer que..."), ou a ausência de individualização clara (sem nomes ou apenas iniciais), remetem o leitor para um ambiente em que a passagem do tempo não produziu efeitos, meio de sabedoria ancestral, em que só a presença intrusa da protagonista, com o seu jipe, representa algo da civilização ocidental, predominantemente urbana e sob o signo da racionalidade.

A obra é pois dotada de elevada complexidade estrutural, assente no poder contrastivo de cada um dos níveis narrativos: o romance, o diário e o folheto de cordel.

Se no segundo nível vigora o sobrenatural, ao primeiro, pelo contrário, presidem a razão e a lógica, ou pelo menos a tentativa delas: os académicos trabalham numa pesquisa científica e lidam com fontes históricas de vária ordem, cujas contribuições procuram sistematizar. De modo idêntico, os pensamentos de Chuck em relação a Ana Maria são constantemente censurados pelo próprio e, como tal, reprimidos até ao desenlace.

Não se estranha pois que a humanidade, ou o que é específico do ser humano, seja também tema do romance. Uma das suas formulações consiste no tratamento da relação entre homem e mulher, ou a tentativa de caracterizar por contraste a maneira de ser fundamental de um e de outro: "Somos uma dicotomia tão exemplar, não somos? A mulher quer respostas a preces. O homem quer respostas a perguntas. As preces dos católicos. As perguntas dos luteranos. (p.231)" Não é por acaso que os narradores dos dois primeiros níveis são homodiegéticos, Chuck no primeiro e uma mulher no segundo. Ao exporem os seus pensamentos, definem-se a si próprios na relação com o sexo oposto.

Assim, a figura feminina é representada tanto pela mulher do espaço exterior (nas versões da belíssima e inteligente Ana Maria, académica de sucesso, e da mulher independente que se refugia do quotidiano num lago tranquilo) como pela do espaço interior, Lynette, a mãe que abdicou da vida profissional em benefício da família. O que o desenlace da obra pretende demonstrar, em hino de louvor à figura feminina, é que ambas são a mesma. Cada uma é o que a outra desejaria ser, ou mesmo, o que realmente é: "Ana Maria, a deusa arrogante vinda do espaço, afinal era o único mártir que alguma vez passou por mim. (...) E Lynette Sorenson, a Mom sem vida própria, (...) afinal era a mais acabada das aventureiras quando não estava ninguém a olhar (p.368)". O homem, de modo simplista, é Chuck Sorenson, cuja responsabilidade é ganhar dinheiro para sustentar a família e que se realiza na investigação académica.

Mas Os Mensageiros Secundários é também uma obra sobre a religião, ou melhor, sobre o transcendente. "Este livro é fundamentalmente um livro sobre Deus", afirma a autora. Esse tema, a partir do qual se elaboram várias variações (discussão da religião formalizada na versão católica e luterana; contraste com o paganismo; apresentação de rituais tribais; valorização da simbologia religiosa, nomeadamente a dos números e da água; elenco e apresentação de santos...), percorre a obra em todos os seus níveis.

É neste âmbito que se explica o título. "Mensageiros secundários" apresenta um significado duplo mas afim em duas áreas do saber. Na história da arte, é a designação proposta por Sorenson para anjos, santos e monstros, "os três agentes celestiais do panteão cristão que fornecem o único elo de ligação possível entre o conhecimento frágil dos pobres mortais e a omnisciência impossível de Deus" (p.144). Na biologia, mensageiro secundário é uma pequena molécula que faz a comunicação entre a célula e o meio exterior à célula; desta molécula há três grupos conhecidos. São em qualquer dos casos elementos cujo valor reside na mensagem que transmitem entre entidades distintas: essa função têm Ana Maria ou o caderno azul de Lynette junto de Chuck, tal como o patriarca cego para a mulher que vive no lago.

O último capítulo da obra, surpreendente, transforma a percepção de cada uma das três personagens pelo leitor. No entanto, mais do que do conhecimento do outro, trata-se aqui do conhecimento de si próprio. Para o auto-conhecimento do indivíduo convergem o primeiro e o segundo níveis narrativos, respectivamente nas figuras de Chuck (através da "mensageira secundária" Ana Maria) e de Lynette. É então que o segundo nível (em que com mais insistência se convoca no discurso a questão da existência de Deus, da sua intervenção no devir, das diversas formas de culto...) se plenifica de sentido: o indivíduo e a transcendência são indissociáveis e complementares. Por isso é que Os Mensageiros Secundários é um romance sobre o homem e sobre Deus e, nesse sentido, o mais humano possível.

Algum desiquilíbrio estrutural decorrente do último capítulo ou faltas de coerência interna poderão desgotar certo leitor mais atento, bem como, aos mais sóbrios, as liberdades de linguagem. Também a voz da autora tende a falar demasiado alto e a sobrepor-se à das personagens. Mas quem preconize a maior adequação possível da literatura à vida encontrará em Os Mensageiros Secundários, na sua variedade e humanidade, um romance admirável.





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Portugal-Post Nr. 32 / 2005